terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Um mar de livros e lembranças

É impossível não relembrar esta cena ao falar de Zila Mamede: de licença das atividades profissionais, a paraibana radicada em Natal acordou feliz, cantarolando uma música de Roberto Carlos, artista que geralmente ou nunca estava entre um de seus preferidos do toca discos. Tomou café, vestiu o maiô e partiu, para nunca mais voltar. A dolorida lembrança acompanha muitos momentos na vida de Ivonete, irmã da poetisa Zila Mamede. E não foi diferente na manhã de ontem. Zila morreu há 25 anos, em 13 de dezembro de 1985. “Quando acordei fiquei lembrando daquele dia. Zila amava muito a família, era rígida em seu trabalho e uma excelente dona de casa”, disse Ivonete. Amigos, familiares e profissionais de biblioteconomia prestaram uma homenagem a Zila Mamede, na tarde de ontem, durante as missas em Ação de Graças, na Igreja Bom Jesus (Ribeira) e na Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório (Mirassol). 


aldair dantasMissa em Ação de Graças nos 25 anos de morte de Zila reúne amigos, bibliotecários e estudiosos de sua obraMissa em Ação de Graças nos 25 anos de morte de Zila reúne amigos, bibliotecários e estudiosos de sua obra
Zila Mamede foi uma mulher que viveu entre versos e prateleiras, destacando-se pelo legado deixado, sobretudo aos potiguares. Foi responsável pela organização da Biblioteca Central da UFRN (hoje Biblioteca Zila Mamede) e a Biblioteca Estadual “Câmara Cascudo”; além disso, lançou seis livros de poemas (‘Rosa de Pedra’, ‘Salinas’, ‘O arado’, Exercício da palavra’, ‘Corpo a corpo’, ‘Navegos) e as bibliografias das obras de Câmara Cascudo e João Cabral de Melo Neto. 

Sobre Zila, a poetisa, Marize Castro disse: “ela deixou uma obra para nortear, para servir de guia para quem escreve e lê.  Em Zila nada é excessos. Tudo é garimpo, concisão. Além claro, sensibilidade”. Segundo Marize, o rigor na composição de seus poemas deve ser tido como exemplo. Um rigor poético. Algo visto em Banho (rural), um dos que constam no livro “Os cem melhores poemas brasileiros do século” (Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2001). Nele Zila diz: “De cabaça na mão, céu nos cabelos/à tarde era que a moça desertava/dos arenzés de alcova. Caminhando/ um passo brando pelas roças ia/ nas vingas nem tocando; reesmagava/na areia os próprios passos, tinha o rio/ com margens engolidas por tabocas,/ feito mais de abandono que de estrada/ e muito mais de estrada que de rio...”

Seus poemas tinham uma arquitetura precisa, na descrição de seus afetos. Tanto, que a distância existente entre o Rio Grande do Norte e o resto do país se tornou mínima, mesmo antes do avanço dos meios de comunicação. As cartas fizeram com que Zila Mamede se aproximasse de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Semideuses da poesia, que foram tocados pelas composições de Zila. 

Em uma das cartas de Drummond enviadas à Zila Mamede, ele diz: “Zila amiga querida, seu livro está aqui, encantando um velho leitor que já o conhecia  bem e agora se alegra de tornar a ver o amigo. Tão puro ele é em sua aderência à terra, aos bichos, à vida natural – e tão enriquecido pelos requintes de espírito daquela que o escreveu! Obrigado pela boa visita, amiga. Senti você conversando comigo”. Drummond se referia ao livro “O Arado”, publicado em 1959. E foi esta mesma Zila Mamede, querida dos semideuses, a primeira a comparecer no lançamento do livro “Marrons Crepons Marfins” da estreante Marize Castro, em 1985. “Zila era uma pessoa simples. Acessível. Ela foi lá, me abraçou, como se estivesse afirmando: esse é o caminho”. 

Zila das Prateleiras

Zila Mamede realizou um trabalho titânico, quando organizou as bibliografias de Cascudo e João Cabral de Melo Neto, consideradas bibliotecas abertas. “Nenhum dos dois acreditou que ela fosse capaz de fazer isso com a obra deles”, destacou Marize Castro, autora da dissertação de mestrado, chamada “O Silencioso exercício de semear bibliotecas”. 

Seu empenho e dedicação nas atividades de bibliotecária acabou influenciando uma geração de profissionais. Uma delas amiga, professora aposentada, Tereza Aranha, que na época era chefe do departamento de Serviço Social da UFRN. Hoje com 82 anos, ela conta que Zila Mamede sugeriu que em seu departamento fosse criado um setor de documentação, contendo a memória da escola de Serviço Social. A sugestão foi acatada e hoje é o único neste formato, na UFRN. Tereza desenvolveu o gosto pela informação com Zila Mamede. É inclusive a fundadora do Núcleo Temático da Seca e Semi-Árido. 

“Zila é uma das grandes referências na poesia potiguar pelo que expressou com uma verdade absoluta no seu poema ‘Ode as secas do Nordeste’, um aspecto relevante na história das tradicionais estiagens de nosso clima, quando obriga os flagelados da seca a percorrerem longas caminhadas esperando receber ‘teto, roupa e pão’, prometidos pelos homens, que tendo poder de decisão preferem usar apenas o poder, revelando com isso a estiagem nos seus próprios corações, que se apropriam da coisa pública, com fins particulares”, disse Tereza Aranha, em entrevista por telefone ao VIVER.

A bibliotecária e pesquisadora Gildete Moura foi outra que tomou decisões importantes na vida, tendo como exemplo o trabalho de Zila Mamede. A bibliotecária abandonou o curso de Direito na UFRN para se encontrar nas prateleiras e em diversas bibliografias. Do tempo que conviveu com Zila, o que mais lhe chamou a atenção, além da dedicação e do rigor profissional, foi a forma como Zila Mamede via a importância da comunicação entre as pessoas e os livros. “Ela tinha um conhecimento muito avançado para época. Foi pioneira em quase tudo o que fez”, destacou Gildete Moura. 

 A morte de Zila Mamede foi anunciada em todos os veículos de comunicação da cidade e de outros estado, manifestando a enorme perda. A matéria publicada nesta TRIBUNA DO NORTE, em 14 de dezembro de 1985, dizia: “Sexta-feira 13 de dezembro, fatal para as letras e a política do Estado. Morre Zila Mamede...  Ontem pela manhã, como fazia todos os dias, saiu cedo de sua residência, no edifício ‘Morada Caminho do Mar’, na rua Seridó, para uma caminhada na Praia do Forte onde, em seguida, costumava fazer algum tempo de natação... Mais tarde seu corpo foi encontrado na Praia da Redinha”

Nenhum comentário:

Postar um comentário